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MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA: Direitos e obrigações básicos que podem salvar seu patrimônio, sua consciência e sua paz!

Jacques Maritain e o Bem Comum

Falar sobre o Bem Comum é cada vez mais complicado. Os mais radicais da esquerda apontam que o "Bem Comum" é método de manipulação consistente no discurso dos conservadores para a preservação da ordem posta. Todavia, não entendem, que não se trata de um termo vazio e manipulável tanto quanto se pensa.

Existe uma profunda reflexão [e muito rica] sobre o Bem Comum, feita por Jacques Maritain, pela qual se explora os elementos, ou, melhor dizendo, componentes do que é o bem comum. 

Em uma breve síntese, para Maritain o Bem Comum se compõe por duas teorias: a personalista e a comunitária, que levam o conceito de Bem Comum à dicotomia individual-social do ser humano, destacando que a pessoa humana não pode ser reduzida a nenhuma de suas dimensões.

Assim, passamos a analisar a valiosa contribuição de Maritain na compreensão do que é o Bem Comum, enquanto valor abstrato que se materializa nos agrupamentos humanos, que se organizam politicamente em prol de um objetivo.


1. TEORIA PERSONALISTA x TEORIA COMUNITÁRIA

Conforme exposto acima, Maritain aponta duas teorias para começarmos a delinear uma definição do Bem Comum.

Por um lado, Maritain aponta a Teoria Personalista do Bem Comum, que se traduz num valor máximo no aspecto temporal e material da pessoa, assim como uma condição pela qual este ser individual se realiza no aspecto supra-temporal e transcendente de seu espírito, ou seja, em sua plenitude.

De outro lado, Maritain destaca a Teoria Comunitária do Bem Comum , consistente num fim último de um corpo político. Ou seja, consiste em um valor supremo e comum a todas as pessoas que foram um corpo político, isto é, um agrupamento humano organizado.

Inobstante as teorias sejam analisadas separadamente, as teorias constituem dois lados de uma mesma moeda. Vale dizer, para Maritain em nenhuma hipótese que não seja para a sua explicação, essas teorias devem observadas separadamente, sob pena de cindirmos o Bem Comum em sua essência, tornando-o qualquer coisa que não o Bem Comum, objeto da investigação.

Nas palavras do brilhante Professor Cezar Saldanha Souza Junior, Bem Comum é “o bem de todos naquilo que todos temos em comum”. E o que temos em comum são os atributos inerentes à nossa espécie: somos um ser individual e somos um ser social, portanto, o bem de todos deve repeitar a dicotomia "indivíduo-sociedade", valendo destacar que Hannah Arendt trata exatamente dessa condição natural da pessoa em sua obra "A Condição Humana".

Nesse sentido, é importante destacar que a igualdade substancial da pessoa humana não se apresenta somente enquanto matéria (características padrões do corpo humano), como também na vocação para o transcendente, na autonomia e liberdade, bem como na necessidade de comunhão, como características inerentes à espécie. 

O respeito às características gerais e comuns da espécie é uma condição de sua própria existência, sendo este o lugar em que habita o Bem Comum. 


2. BEM COMUM E A ORDEM TRANSCENDENTE: O CARÁTER DÚPLICE DO BEM COMUM

Aqui é preciso ter um pouco de cuidado, pois Jacques Maritain faz referências à Deus, partindo da premissa do Cristianismo como centro do pensamento e o Deus referencado é o Deus católico.

Apesar disso, suas lições são valiosas e eu ouso interpretar as referências de Maritain à Deus, como sendo o Ente Divino, que se constitui no sobrenatural e ao qual a pessoa humana se curva, presta culto, ou simplesmente, admira, pois parto da premissa de que as sociedades ocidentais, ainda que sejam predominantemente Cristãs, são plurais. 

A minha preferência por adotar termos mais genéricos na leitura da obra de Maritain se dá pelo fato de que muitas pessoas que não vivem o Cristianismo, ou mesmo não vivem religião alguma, simplesmente agem de acordo com o BEM transcendente e os valores supra-temporais, aplicáveis à todos, indistintamente, pautados em amor, caridade, amizade e contemplação.

Mas, repriso que a minha visão não é a visão de Jacques Maritain, segundo o qual o Bem Comum é pautado no Cristianismo. Para Maritain, o Bem Comum da Pessoa Humana nela se realiza temporalmente (por meio do corpo político), e a torna realizada plenamente no “seu análogo supremo, em Deus, no Acto puro”, sendo Deus o próprio Bem que se manifesta pela sociedade de Pessoas divinas (a Trindade) e daí decorre uma série de questões metafísicas nas quais não quero me aprofundar.

O que é necessário apontar dentro do contexto sobrenatural é a condição de subordinação existente entre o Bem Comum temporal e o Bem Comum supra-temporal. Ou seja, o Bem Comum do corpo político está subordinado ao Bem Comum da Pessoa Humana vocacionada ao transcendente, posto que:
“Esta subordinação intrínseca refere-se antes de tudo à felicidade sobrenatural a que a pessoa humana está directamente ordenada. Refere-se também e já, e é o que primeiramente o filósofo tem de pôr em evidência, a tudo o que, sendo naturalmente da ordem do absoluto, transcende de si a sociedade política: eu entendo a lei natural e a regra da justiça e as exigências do amor fraterno; entendo a vida do espírito e tudo o que é em nós uma incoação natural da contemplação; entendo a dignidade imaterial da verdade, em todos os domínios e em todos os graus, por humildes que sejam, do conhecimento especulativo, e a dignidade imaterial da beleza, que ambas são mais nobres que as coisas da vida comum...”

Diz, Maritain, que o Bem Comum:
 “É a boa vida humana da multidão, duma multidão de pessoas; é a sua comunhão no bem-viver; é, portanto, comum ao todo e às partes, sobre as quais se derrama e que devem beneficiar dele; com risco de se desnaturar a si mesmo, implica e exige o reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas (e dos direitos da sociedade familiar, em que as pessoas estão comprometidas mais primitivamente que na sociedade política): comporta como valor principal a mais alta acessão possível (isto é, compatível com o bem todo) das pessoas à sua vida de pessoa e à sua liberdade de expansão... Supõe as pessoas e derrama-se sobre elas e, neste sentido, realiza-se nelas.”
Continua:

“O que constitui o bem comum da sociedade política, não é, pois, somente o conjunto dos bens ou serviços de utilidade pública ou de interesse nacional (estradas, portos, escolas, etc.) que supõe a organização da vida comum, nem as boas finanças do Estado, nem o seu poder militar, não é somente o conjunto de leis justas, de bons costumes e de instituições capazes que dão a sua estrutura à nação, nem a herança das suas grandes recordações históricas, dos seus símbolos e das suas glórias, das suas tradições vivas e dos seus tesouros de cultura. O bem comum compreende todas estas coisas, mas muito mais ainda, e no mais profundo, mais concreto e mais humano: porque envolve também, e antes de tudo, a própria soma (…), envolve a soma ou integração sociológica de tudo o que há de consciência cívica, de virtudes políticas e de sentido do direito e da liberdade, e de tudo o que há de atividade, de prosperidade material e de riquezas do espírito, de sabedoria hereditária inconsciente posta em acção, de rectidão moral, de justiça, de amizade, de felicidade e de virtude, e de heroísmo, nas vidas individuais dos membros da comunidade, enquanto tudo isso é, numa certa medida, comunicável, e recai numa certa medida sobre cada um e auxilia assim cada um a contemplar a sua vida e a sua liberdade de pessoa. É tudo isso que faz a boa vida humana da multidão.”

Diz ainda:
“...em razão da sua ordenação para o absoluto e enquanto é chamada a um destino superior ao tempo, ou seja, segundo as mais elevadas exigências da personalidade como tal, a pessoa humana, como totalidade espiritual referida ao Todo transcendente, ultrapassa todas as sociedades temporais e é-lhes superior; sob este ponto de vista, isto é, das coisas que não são de César, é à realização perfeita da pessoa e das suas aspirações supra-temporais que a própria sociedade e o seu bem comum estão subordinados, como a um fim de uma outra ordem e que os transcende. (…) O bem comum da vita civilis [vida civil] é um fim ultimo, mas um fim último secundum quid [segundo o qual] e numa dada ordem. Perde-se se se fecha em si mesmo, é de sua própria natureza favorecer os fins superiores da pessoa humana, a vocação da pessoa humana para bens que o ultrapassam está inviscerada na essência do bem comum. Desconhecer estas verdades é pecar simultâneamente contra a pessoa humana e contra o bem comum.”
Diante disto, temos o caráter dúplice do bem comum: ele é o fim último do corpo político e, ao mesmo tempo, é um “fim infra-valente” (não é considerado um “puro meio”, mas um fim que direciona a ordem supra-temporal) para a plena realização da pessoa humana em sua vocação para o que é eterno.


3. BREVES REFLEXÕES

O conceito trazido por Maritain nos é muito rico, mas precisamos acatá-lo com uma certa cautela. Talvez, o ilustre pensador fosse mais feliz em sua proposição de idéias se aceitasse o bem comum como o objetivo último surgido da necessidade das pessoas humanas em (re)afirmar sua existência, pois em razão da pluralidade de meios, o bem comum torna-se inalcançável em plenitude, especialmente pela variedade ideológica.

E, com todo respeito e humildade, digo que os pensamentos de Maritain, em certa medida, caminham numa via perigosa, na qual se admite a existência da sociedade perfeita em que o ser humano desenvolve sua vocação para o que é eterno e no eterno se realiza.

Ora, se a religiosidade é inerente ao ser humano, podemos contextualizá-la na dimensão das liberdades individuais, pois cada qual possui o seu olhar sobre aquilo que é eterno e, necessariamente, não significa o eterno se encerra, como pensa Maritain, no que diz o Cristianismo.

Cumpre dizer que no aspecto temporal, que é o que nos interessa, não há plenitude de realização da pessoa humana, seja em sua vocação para o que é eterno, seja em sua vocação para o que é temporário.

A mesma crítica que se faz a aqueles que atestam as injustiças por responsabilidade do regime econômico vigente é a que fazemos a Maritain. Ou seja, parece, no mínimo, equivocado admitir a existência de uma sociedade justa, perfeita, coordenada, onde reina a plena felicidade de todos os seus membros e a todo o tempo, sem qualquer divergência.

Assim, admitindo a existência de conflitos incessantes de interesses diversos e a impossibilidade da sociedade perfeita, podemos admitir que o bem comum está relacionado aos próprios entraves, ao conflito que faz movimentar as ações humanas para mudanças e melhorias, sendo, pois, o fruto de uma consensualidade entre as forças opositoras.

A estruturação dessa harmonia entre as forças opositoras não decorre da respectiva benevolência, mas por limites necessários à manutenção da mútua sobrevivência, sob pena de sucumbirem todas de uma só vez. 

É nesse aspecto que surge o Direito, não como um instrumento de dominação, mas como aparato destinado à corporificar a abstração do corpo político, reunindo-o em torno de seus valores comuns, os quais servem de diretriz para a organização essencial da vida social.